Teoria do/a Narrador/a
Uma história nunca se conta sozinha e quem a narra nunca é seu autor/a, mas um ser ficcional autônomo em que este se metamorfoseia e se reveste da personalidade por este/a inventado/a. O/A narrador/a é um personagem escondido na ação narrada independente do ser real do/a autor/a que o criou.
Em síntese, a Teoria da Narrativa postula duas formas de narrador/a. A primeira refere-se aquele/a a quem se exige o intercâmbio de experiências, ou seja, aquele que participa da história narrando acontecimentos como um personagem principal ou uma testemunha, apresentando a história do ponto de vista de quem a viveu e descrevendo uma experiência quase autobiográfica. Outra forma, é o/a narrador/a se apresentar na condição de observador/a, que se distancia dos fatos narrados para poder melhor narrá-los. Esse último se apresenta oniscientemente (que sabe tudo sobre a história) ou onipresentemente (que está presente em todos os lugares da história), na qualidade de quem as relata apresentando a descrição das circunstâncias em que foi informado/a dos fatos que vai contar a seguir.
Essa diferenciação da distância a que se coloca o/a narrador/a do evento sobre o qual narra, Platão, no Livro III da República, opõe dois modos narrativos, o da narrativa pura, quando a pessoa que narra “fala em seu nome em procurar fazer-nos crer que é um outro que não ele quem fala” e o da imitação ou mimese, quando a pessoa narradora “se esforça por dar a ilusão de que não é ele quem fala” (Platão apud Gennete, 1995, p.160), mas uma personagem que pronuncia ou apresenta o fato narrado. Ancorando-se nestes dois modos, o linguista russo Todorov (apud Gennete, 1995, p.27-29) distinguirá a presença do/a narrador/a de três formas: fonte, organizador/a da narrativa, ou como analista e comentador/a.
É por meio do compartilhamento das narrativas, em momentos de contações de histórias, relatos de experiências, toda e qualquer manifestação social e cultural que é dada a legitimação de estar no mundo e também a experiência de pertencimento a uma sociedade. Estes elementos são a base da identidade coletiva, pois a todo instante as pessoas estão narrando.
Como um fenômeno intersubjetivo, o mundo é aquilo que se vive ou que se percebe sobre ele e ainda aquilo que cada um percebe nos outros, o que conduz a uma operação seletiva e reflexiva de ser ou de estar no mundo (êtreau-monde) para a adaptação a cada situação ou experiência vivida.
Para o filósofo alemão Walter Benjamin (1994), em sua Teoria da Experiência, a narrativa reflete a ação do indivíduo no mundo e torna-se uma sucessão de relatos passados uns aos outros: “o narrador conta o que ele extrai da experiência – sua própria ou aquela contada por outros; e de volta, ele a torna experiência daqueles que ouvem a história”. Identificando a História como “camadas finas e translúcidas” (1994, p.206) o pensador identifica a memória, a historicidade e a intersubjetividade como a base de toda narrativa, a qual faz parte do processo de compreensão do mundo e da realidade.
O narrador pode recorrer a um acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. O narrador assimila à sua substância mais íntima àquilo que sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a mecha de sua vida. O narrador é a figura na qual o justo se encontra consigo mesmo (Benjamin, 1994, p.221).
O sentido de mundo se dá, portanto, a partir da interação de indivíduos de uma sociedade através de mecanismos de articulação da vida coletiva e dos processos de lutas. Ademais, nos momentos em que as pessoas se encontram para falar, argumentar, discutir o cotidiano, ou quando estão expostas às instituições, aos meios de comunicação, aos mitos e à herança histórico-cultural de suas sociedades. O próprio ato de narrar é uma manifestação que tem a função de permitir a interação entre narrador/a e ouvinte ou espectador/a.
Benjamin explica que a pessoa que narra é aquela que sabe dar conselhos e figura entre os/as mestres e sábios/as, pois possui a sabedoria como substância viva da existência onde, segundo ele, “todo o conhecimento deságua no rio da linguagem” (apud Cantinho, 2002, p.200). O filósofo alemão defende o/a narrador/a dos contos de fadas como o/a originário/a e verdadeiro/a uma vez que é o/a primeiro/a conselheiro/a das crianças e, por sua vez, da humanidade.
O elemento mítico é figurado, no sentido de que age de forma estática e cativante, mas nunca fora do homem, num sentido semelhante ao do conto de fada, que expressa as primeiras medidas tomadas pela humanidade para libertar-se do pesadelo mítico. O feitiço libertador do conto de fadas não põe em cena a natureza como uma entidade mítica, mas indica a sua cumplicidade com o homem liberado (Benjamin, 1994, p.215).
Focando seus estudos na reconciliação do mito, Walter Benjamin (apud Cantinho, 2002, p.15), reforçará́ a ideia messiânica da história universal (universahistoriche) compondo uma lembrança nostálgica da história antes do industrialismo. Entretanto, o pensador ao verificar a diminuição dos espaços, dos momentos e das experiências de vida nas sociedades modernas, aponta que estas vêm se dissociando do poder mediúnico e do poder simbólico presente na linguagem, o que alimenta a discussão sobre a crise da linguagem e principalmente das narrativas tradicionais.
Benjamin elenca a memória contida na herança, a historicidade e a intersubjetividade como elementos fundantes da narrativa. Para ele, a experiência para ser vivida necessita ser narrada, o que torna as narrativas úteis, quando se apresentam sob a forma de aconselhamento, sugestão prática, provérbio ou norma de vida ou ainda para o ensinamento moral. Ao fortalecerem o dinamismo cultural entre as gerações, elas estabelecem uma ponte entre o passado e o presente.
Por meio das dramatizações e da exteriorização dos conflitos, a narrativa exerce um efeito tranquilizador na vida dos humanos, pois sublima as dores e a angústia da experiência de viver, num esquecimento involuntário da presença do mito da morte, por isso, os gêneros narrativos envolvem histórias boas, cômicas, tristes ou absurdas, dramas envolventes reais ou ficcionais.
Os abrigos, ambientes familiares, templos religiosos e espaços de trabalhos sempre foram o local das trocas das experiências, das tradições e das atividades artesanais. Neles ocorriam as audições das cantigas e das narrativas, que representavam uma rede, na qual se deitava o dom narrativo, tecida há milênios num compasso lento e tedioso. O ritmo compassado do trabalho coletivo permitia a escuta das histórias de tal maneira que o ouvinte adquirisse espontaneamente o dom de narrá-las novamente sucedendo umas as outras.
As tradições são formadas pelo acúmulo do conhecimento e representam o coroamento das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas que ocorrem na forma da experiência cotidiana e da repetição da história ou de sua multiplicação. A disposição dos acontecimentos na narrativa obedece a uma ordem temporal de sucessão de acontecimentos (tempo da história ou diegese) e a uma ordem pseudo-temporal da sucessão na narrativa (tempo da coisa-contada ou tempo da leitura da narrativa). Na duração variável dos acontecimentos (longa ou curta) a pessoa narradora vai descobrindo o que se passa ao mesmo tempo em que narra/conta, nela está presente a velocidade, a frequência, ou a repetição com que os fatos são narrados.
Mas, como essas narrativas estão sendo contadas atualmente?
O surgimento de ferramentas modernas de comunicação, como a imprensa, a fotografia, o cinema, o rádio, televisão e a internet, foram se propagando e viabilizaram novas formas de comunicação e consequentemente, novas linguagens que são utilizadas pelo homem para registrar suas histórias e fatos vividos. Portanto, tendo em vista que alguns costumes mudaram, as formas de narrar também necessitavam passar por alterações relevantes.
O que antes se resumia numa forma de expressão oral e escrita, hoje em dia está sendo substituída pelos recursos tecnológicos como televisão, vídeos, imagens e principalmente os que envolvem a internet através das redes sociais. Com isso, se cria uma nova forma de ver, contar e entender o mundo e as coisas.
Paralelamente, em profundo entrelaçamento da verdade como ilusão, as sociedades, calcadas nas novas tecnologias em especial as imagens digitais, vêm produzindo uma crença na realidade cada vez mais distanciada dos termos que lhe deram origem (do francês, reality e do latim, realitas, realis, de res-coisa).
Pode-se constatar que a acelerada transformação nos modelos de vida e costumes, não podem ser acompanhados pelo homem que com o passar dos anos substituiu as histórias tradicionalmente narradas por “anciões”, e por isso eram reconhecidos e respeitados como seres portadores de muito conhecimento.
Dessa forma, vê-se que os meios tecnológicos utilizados para se comunicar afetou e afeta diretamente no comportamento cultural de uma sociedade. Porém, de certa forma, as velhas formas foram sendo recriadas e assumindo peculiaridades específicas para se chegar às novas linguagens que assumem o mesmo papel das anteriores, mas com formatos diferentes. Os homens-memória foram sendo substituídos por essas novas linguagens que apresentam uma relação muito viva de interação e diálogo entre texto e imagem.
Referências:
Benjamin, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed.Trad. Sérgio Paulo Rouanet; prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, v.1).
Freire, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
Genette, G., Discurso da narrativa. 3. ed. Lisboa: Vega, 1995.
Platão, A República. Edipro, São Paulo, 2006.